quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

JORGE AMADO, UMA BIOGRAFIA, de JOSELIA AGUIAR




    Tão esperado quanto essencial. Devorei por inteiro nesses três dias natalinos. Lê-se ao gosto do freguês: grande reportagem, extenso perfil biográfico, romanção ou uma biografia, como quer a autora. De qualquer forma, leitura proveitosa e estimulante. Fiquei agora me coçando pra ler mais uma vez alguns dos romances amadianos. 

     A obra de Jorge Amado está na base da minha formação de leitor e de escritor. Depois dos livros de Lobato, caiu-me nas mãos, por intermédio da minha professora de português no Ginásio de Ibotirama, Vitória Rodrigues, a obra completa (até então, 1970) de Jorge. Encarei até "Subterrâneos da liberdade" que, nos meus verdes anos, pareceu-me um cipoal espinhento. 

     Essa biografia que Joselia Aguiar preparou durante sete anos de pesquisas, leituras e entrevistas, entregue ao público pela editora Todavia, permite ao seu leitor uma compreensão mais viva do homem familiar (seus casamentos com Matilde, com quem teve Lila, e com Zélia, com quem teve João Jorge e Paloma), do ativista político (autor da emenda constitucional que instituiu a liberdade religiosa no Brasil) e do escritor prolífico (romances, biografias, livros infantis, guia turístico) que foi Jorge Amado, o Vermelho. Mais ainda: do seu gosto pelas grandes amizades, pelas viagens, pela defesa dos mais necessitados, por tudo que se diz Bahia, no que há de mais extenso e profundo.

   A própria autora reconhece que "Jorge Amado é uma área de investigação interminável". Seu trabalho é admirável, merece todos os aplausos, justificou a ansiosa espera pelo livro. De minha parte, emocionei-me com a história de Matilde e Lila. Os trechos do diário de Lila, morta aos quinze anos, dizem bem da precoce maturidade, enorme sensibilidade e do potencial narrativo que a adolescente possuía: "As cigarras cantam feito doidas anunciando o verão que se aproxima. [...] Graças a Deus já estamos em dezembro. Eu não devia dar graças a Deus, é menos um dia na vida, mais um passo para a morte. Mas é também mais uma passo para a cura ou para a verdade". Coisa minha, por isso mesmo a registro: Lila entra para o rol de minhas heroínas particulares. 

     E viva Jorge!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O INTRUSO, de RUY ESPINHEIRA FILHO



O intruso, Ruy Espinheira Filho

                                  Em parceria com Machado de Assis


I
Logo que sua mãe morreu, 
Dom Casmurro foi visitar a casa 
da infância e juventude, 
porém ela, a casa, 
a casa toda, 
o desconheceu.

II
No quintal, nada sabiam dele
a aroeira, a pitangueira, o poço,
a caçamba velha e o lavadouro.
O tronco da casuarina, 
que ficava ao fundo, 
em vez de reto, 
como outrora, 
tinha agora um ar de 
ponto de interrogação, 
como se pasmasse diante 
do intruso.

III
Correu, então, o Dom, os olhos
pelo ar, 
buscando algum pensamento que ali pudesse
ter deixado 
e não achou nenhum.

IV
Também não entendeu 
o sussurro da ramagem, 
que sugeria ser a cantiga
das manhãs novas. 
E o grunhido dos porcos lhe pareceu 
uma espécie de troça concentrada 
e filosófica 

V
Sim, tudo estranho, estranho. 
E então deixou, 
o Dom, 
que demolissem a casa.

VI
Bem, fico pensando nesse homem 
do Capítulo CXLIV 
e encontro a mim mesmo em casas e cidades 
idas e vividas. O intruso, 
o estranho 
que elas jamais viram antes. 
Porque, na verdade, não sou 
quem ali esteve e viveu. Sou
outro, 
outro ser e outra 
vida.

VII
Não pode, pois, haver reconhecimento. 
Nem de mim nem de qualquer 
na mesma condição. A menos 
que tenhamos deixado Argos 
à nossa espera, 
pois, mesmo quase cego e coberto 
de sarna e pulgas, 
nos receberá com seu último alento 
e nossa última lágrima. 
Argos, apenas ele,  que, 
na verdade, 
não reconhece o intruso e sim 
o que nele, cão, nunca partiu...

VIII
Mas, afinal, quantos de nós merecem 
essa fidelidade de milênios?

IX
Não pode haver diversa conclusão: 
acabamos sendo, 
todos, 
aquele do Capítulo CXLIV, 
que se retira como desconhecido porque 
nunca realmente esteve ali. 

X
Foi outro quem ali esteve, 
outro. 
E o que vem, o intruso, 
não consegue enganar a casa, 
a aroeira, a pitangueira, o poço, 
a caçamba velha, o lavadouro, 
a casuarina, 
a cantiga da ramagem e a sabedoria irônica 
dos porcos, 
que não acreditam em fantasmas. 


Ruy Espinheira Filho é poeta, romancista, professor, cronista e jornalista. Tem mais 20 livros publicados, entre eles As sombras luminosasElegia de agostoMemória da chuvaSob o céu de Samarcanda e Um rio corre na Lua. 

O Intruso é poema inédito em livro e foi publicado pelo jornal Cândido, da Biblioteca Publica do Estado do Paraná, edição de dezembro 2018.
  • Foto> Paolo Paes, Flica

domingo, 11 de novembro de 2018

GUIMARÃES ROSA, O SERTANEJO





   [...] nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar histórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo em que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narrar histórias corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens. Assim, não é de estranhar que a gente comece desde muito jovem. Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer com seu tempo livre a não ser contar histórias? [...] Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda. [...] Quem cresce em um mundo que é literatura pura, bela, verdadeira, real, deve algum dia começar a escrever, se tiver uma centelha de talento para as letras.


   João Guimarães Rosa, em entrevista a Gunter Lorenz, publicada em "Diálogo com a América Latina - panorama de uma literatura do futuro", em edição da EPU - Editora Pedagógica e Universitária, SP, 1973.

sábado, 20 de outubro de 2018

TEMAS PARA QUALQUER TEMPO




   É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte.

   Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.

  É nunca fazer nada que o mestre mandar. Sempre desobedecer, nunca reverenciar.

    Cada povo tem o novo que merece.

    O lírio que nasce no campo, vive na lama também.

    Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo.

    E assim se passaram os dias.



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

GLÓRIA, de VICTOR HERINGER



   

   
   Depois de ler umas 70 páginas do romance "Glória", de Victor Heringer, na nova edição da Cia das Letras, posso dizer que o Brasil perdeu este ano um grande escritor. Não um jovem escritor. Muito menos um escritor promissor. Mas um grande escritor. Desses que impressionam pela profusão criativa, de recursos, de conteúdos, de habilidades com a linguagem, de estabelecer conexões, interconexões, o escambau, como quem conta um causo mantendo sempre acesa a brasa sem aparentar esforço (assim como Gal canta). E graça com a desgraça, pois entre sarro e sisudez sabemos que abrir picadas na galharia espinhosa exige lâmina afiada e couraça rija. 

     O Brasil perdeu um grande escritor.
    
     Fica provado, assim, que Deus é, era, gago.


terça-feira, 25 de setembro de 2018

MEU IRMÃO



   Ontem, 24 de setembro, fez 49 anos que meu irmão Antonio Nelson morreu.
  Desde o domingo, 23, que tenho dele me lembrado. O acidente que o vitimou aconteceu na noite anterior à sua morte.
   Tudo na frase inicial me causa espanto: o tempo que passou, o irmão, o nome, a morte. 
    Quase cinco décadas... guardo uma lembrança de nós dois, juntos, no meio da noite "assistindo" pelas ondas do rádio ao milésimo gol de Pelé. Mas é falsa. Ele morreu dois meses antes daquele Vasco x Santos. Que partida terá sido a que assistimos, então? Talvez eu venha a me lembrar no "memento mori", ou dia desses, vendo uma foto de uma célula, lendo um artigo sobre o planeta Vulcano.
     O irmão que era meu ídolo e de quem só levei cascudo e taponas... Mas que fazia meu coração bater forte com cada estrepolia cometida, dentro e fora do campo de futebol. Um artista em estado bruto, a soltar chispas no deserto.
     O nome sobrevive na lápide e numa rua da cidade. Quase escrevi "cidade natal", mas meu irmão nasceu em São Paulo, no bairro da Lapa, acredito eu. O nome do pai e do avô materno. Um composto familiar que não resistiu a si mesmo.
     A morte, mais que inesperada, aos 15 anos incompletos, resultou sendo a partida que sempre desejou: "um dia vou-me embora daqui". Até hoje não foi, de verdade.


sábado, 15 de setembro de 2018

POESIA CHINESA, de ANDRÉ CARAMURU AUBERT




    O professor Teixeira se queixou de sua poesia não repercutir junto à crítica, que mal havia saído uma resenha em blogue, disse ele. Bem, não faço resenha, apenas comento os livros cuja leitura aprecio, não perco mais do meu tempo com os "outros". O professor Teixeira está bem ocupado, pelo que percebi, com sua nova amiga, a investigadora Carmen e com a antiga, ah, Simone, mas... ó ele aqui num blogue de novo! Grande Teixeira...!
      
     Bela ideia, essa, de trazer um curso sobre poesia chinesa como extrato vital de uma narrativa romanesca. Bela ideia, meu caro André Caramuru Aubert. A gente se senta e participa do curso com certo entusiasmo. EAD apimentada. A gente pensa que conhece poesia chinesa. Até tenho aqui uma coletânea e tal e coisa. Mas, ora, o Teixeira revira as dinastias, revela particularidades daquelas épocas em que poetar era fundamental para a carreira do servidor público. Pensem um pouco nisso. 

    E nos faz lembrar de Paterson, o filme, e de William Carlos Williams, por conseguinte. Vou assisti-lo hoje mais uma vez, só por causa do "Poesia Chinesa", vejam vocês. Sim, não uma poesia que cante o amor e a guerra, mas o vento, as curvas das montanhas, o sentido da ausência, do caminho, da chuva que cai, essas coisinhas de que a poesia verdadeiramente é feita. Sim, um versejar que viaja mundos, modifica-os e retorna para influenciar sua própria origem. Ou não, sabe-se lá. Mas que é bonito, é. E  muito.

    Claro que revelar esses meandros líricos para alunos e alunas da pós pode propiciar a um professor momentos de realização profissional e uma ou outra encrenca no território íntimo. Nosso grande Teixeira passa por isso, essas realizações, essas encrencas. E a crônica das intrigas acadêmicas, que o Autor oportunamente traz para o texto, confere ainda ao romance tensão e graça pelos episódios kafkianos, dantescos, temerários, e certo desgosto pelo alto grau de veracidade que concretiza. No que vai muito bem, diga-se sem receios com o policiamento do politicamente correto. 

     Perdi a conta das garrafas de vinho abertas e enxugadas nesse romance do Aubert, por isso abri uma para meu bom prazer, de um honesto chileno tinto Reserva do Loncomilla Valley, e para escrever estas linhas. Trair e ser traído, pelo quique da bola ou pelo silêncio de quem se ama. Ser um poema chinês, açoitado pelos cheiros marinhos ou das ruínas silvestres. Seguir a sombra, repetir os erros, como quem bate ponto no portão da fábrica toda madrugada, sei lá, permitir à vida que aconteça em plenitude nas entrelinhas. Pois nas linhas, ora, nas linhas correm os trens. 

Poesia chinesa, de André Caramuru Aubert, SESI-SP Editora, 2018.

      

sábado, 1 de setembro de 2018

O PAI DA MENINA MORTA, de TIAGO FERRO



    
   "Sobrou um fio de cabelo na fronha? Um pedaço de unha atrás da privada no chão gelado do banheiro? O hálito forte da manhã entre o teto do quarto e a cama de cima do beliche? Não há nada a fazer com os seis dentes de leite guardados na caixinha laranja que faz um barulho triste de chocalho órfão quando balançada."

   Não sei que perguntas faria, muito menos se escreveria um livro ou apenas um bilhete. Ser o pai de uma menina morta deve revirar, mesmo, uma pessoa pelo avesso; prosseguir, assim, vísceras expostas, a se despedaçar aos poucos, a se dessangrar tempo adentro pode resultar em desvarios e perdas irrecuperáveis. Tudo o mais torna-se crueldade pura a chicotear o lombo desse pai, da buzina dos carros na rua ao riso do casal na lanchonete. E, no entanto, o coração não para, a mente insiste em registrar com maior intensidade o que antes mal se vislumbrava.

   E como é preciso gritar, as mãos escrevem. E o leitor desse "O pai da menina morta", de Tiago Ferro, sente-se também açoitado pelo desvario da narrativa fractal, se posso assim dizer, revolvida por uma inescapável dor, dor que jamais encontra lenitivo, pois os golpes se sucedem impiedosos. Se nem mesmo os especialistas conseguem firmar a tempo um diagnóstico que permita a um coração seguir batendo, curvar-se não pode ser opção a um pai que perde sua filha.

   A morte de uma criança cancela uma sequência inteira de futuro, abre um vazio na história familiar, se a família resistir a essa perda. Ferro viveu sua tragédia pessoal, somos informados disso; talvez brote daí a amplitude e a profundidade que imprime a história que nos desvela, ou nos enovela feito um Pollock apunhalado. Confesso que não consegui me abrir às pinceladas de humor e a presença de Maradona e da Copa de 86 do/no texto. Sou pai de uma menina grande, estive preso ao  núcleo do romance, muito ocupado em manter regulares a TA e os batimentos cardíacos. Pancadão.

O pai da menina morta, Tiago Ferro, editora Todavia, SP, 2018

domingo, 26 de agosto de 2018

O PESO DO PÁSSARO MORTO, de ALINE BEI



    Aqui está um romance que inova na forma e preserva o que a literatura tem de mais poderoso: emoção e lirismo. Sua verdade conquista o leitor sem lançar mão de artifícios, discursos da moda. É pura literatura, sem concessões. Aline Bei sabe que "a cura não existe" e que a humanidade parece se especializar em produzir doenças. E tudo isso pesa demais, precisa ser sacudido, carece de benzeduras.
   
   Da infância à idade madura, tudo pode se tornar um rosário de perdas. Muda-se de escola, de bairro, de trabalho, de amor e a caixinha de guardados acumula apenas ausência e dor, "eu/ quase nunca usava plural fora de casa", diz a protagonista, e qualquer de nós também pode dizer. E dizer em parágrafos escorreitos ou em versos de métrica perfeita ou em versos livres, tanto faz, creio eu, face a "o peso do pássaro morto". O "fraseado" solto e leve, escolhido por Bei, confere ao texto a elasticidade própria do viver, esse golpear constante de atos inesperados e incompreendidos. 
   
   Viver é ser alvo permanente. Violência na escola, violência contra a mulher, distanciamento entre pais e filhos, solidão na velhice, temas da contemporaneidade compõem a trama do romance sem, em momento algum, assumir tom de libelo, acontecem pois foi assim que se deu a história da amiga de Carla, da mãe de Lucas, da mulher apaixonada por Vento, essa história com a qual Aline Bei inicia sua carreira de escritora. Uma carta atirada por baixo de nossa porta, posto que jardim não mais temos.
  
   Fechei o livro com aquela sensação maravilhosa de ter participado de uma experiência singular e emocionante. Não de querer mais, não, não. Pois lá estava tudo que a Autora teve a oferecer ali, principalmente as turvações. Um filho pode se tornar um completo estranho, sim. Um cão, animal estigmatizado por causar a perda e a dor mais profunda à protagonista, pode vir a ser, sim, um companheiro mais que amado. E o que é o amor, se não o combustível que permite viajar ao encontro do desconhecido?


O peso do pássaro morto, de Aline Bei, Editora Nós/SP, 2017

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

FLORISVALDO MATTOS LANÇA LIVRO NO IGHBa



   Nesta sexta-feira, dia 24 de agosto, a partir das 18 horas, no IGHBa (Praça da Piedade), o poeta e jornalista Florisvaldo Mattos promove o lançamento de nova edição de seu livro "A Comunicação Social na Revolução dos Alfaiates", em edição da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia-ALBA. Feito o convite, lá estaremos.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

O QUE ACONTECE NA VARANDA




   Algo me impede de olhar a varanda.
   Lá, tudo acontece o tempo todo.
   Movimentação contínua, barulho permanente.
   Agora nenhum ruído chega de lá. 
   O sol se recusa, o vento varre.
   A chuva se esbate na vidraçaria.
   E uma penumbra teimosa reina na varanda.
   Temo demais romper essa sombra.
   É que tudo acontece com mais intensidade, sinto.
   O silêncio instalado procria.
   Procria.
   O que não percebo, mas está.

sábado, 18 de agosto de 2018

REMORSOS PARA UM CORDEIRO BRANCO, REINA MARIA RODRIGUEZ




        Também fui menino 
             e fui menina

eu também fui menino e fui menina
e tive corpo e tive vida
andei dispersando-me entre outros corpos.
só cheguei a ser quem sou
quando soube que algo morria por dentro
onde morava em pequeno espaço do peito
um cordeirinho branco
que me lambia
aos gritos.


Remorsos para um cordeiro branco, de Reina Maria Rodriguez, em tradução de José Eduardo Degrazia, publicado pela Editora Penalux, 2018. Reina nasceu em 1952 em Cuba, onde vive "com seus gatos, seu piano, seus amigos e sua poesia", no dizer do tradutor e apresentador dessa antologia da poeta. Não li o livro, li alguns poemas que me foram passados por Mônica Menezes, por deles muito gostar. Aí está o primeiro que li. Vamos ao livro agora, todos os que lerem isto aqui.


domingo, 12 de agosto de 2018

MINOTAURO, BENJAMIN THAMMUZ





   Li em duas sentadas esse romance do Tammuz. Desses que a gente lamenta chegar ao fim. Mas dá um prazer que se alonga por muito tempo após o livro fechado. E que permanece em nós maturando reflexões sobre a capacidade humana de amar, de se enganar, de urdir armadilhas inescapáveis para si mesmo. Lembrei-me de "Museu da inocência", do Pamuk, narrativas que se aproximam pelo vetor obsessão amorosa. Ah, mas tão díspares...
   
   Um homem maduro julga ter encontrado a mulher por quem sempre sonhou encarnada numa adolescente de 17 anos. Está a trabalho num país estrangeiro. Por conta de sua profissão, logo se informa sobre a moça e passa a lhe enviar cartas. Sedutoras, amorosas, misteriosas. A moça cede ao jogo, propõe aproximações, sempre evitadas pelo homem, que ora some, ora ressurge em novas cartas. Daí, com o tempero do tempo, as situações dramáticas se sucedem.
   
   O homem é agente secreto israelense. Tammuz traz para o romance um resumo do que foram os embates entre árabes e judeus no território da Palestina e suas colônias por boa parte do século passado. Nada simplificado. Mais para caleidoscópio. Dois dos homens que a desejada moça, não por acaso chamada Téa, são produtos de somas genéticas e culturais do Oriente com o Ocidente, modelos de homens planetários, embora comprometidos com propósitos nacionais. Um possui vários passaportes diferentes, outro defende uma civilização mediterrânea, ambos falam várias línguas - seres ampliados em sua condição natural. 
   
  Agradou-me especialmente o destemor de Tammuz com a repetição, não só de informações mas de trechos integrais da narrativa. Um recurso da poesia utilizado na prosa, sem economias, que funciona com um peso dramático surpreendente. Talvez eu o leia novamente, antes de devolver o exemplar ao mestre Ruy Espinheira Filho, que mo emprestou.

   Trechos: "Então, ele aguardou o momento em que ela voltasse o perfil para a amiga e, quando isso aconteceu e ele viu os traços do rosto da garota, sua boca se abriu como se ele estivesse prestes a soltar um grito, que, contudo, ficou reprimido. Ou será que o grito escapou de sua boca? De qualquer forma, os passageiros não reagiram." [...] 
   "Não sei por que eu achava que, antes de encontrá-la, receberia algum aviso prévio. De todo modo, nunca imaginei que seria pego de surpresa. Mas fui. Eu a vi de repente, sentando-se na minha frente no ônibus. Não tive dificuldade nenhuma em reconhecê-la. Quando ela desceu, eu a segui.[...] A pele e a tez do seu rosto eram como eu os recordava: muito claros, como os de minha mãe, com um rosado que ficava mais profundo, sem qualquer marca e sem pressa, na direção das maçãs do rosto, tão gradualmente a ponto de não ser possível dizer onde a brancura acabava e onde começava o rosado. Mas sua boca era de um repentino rubro brilhante. E aqueles dentes. Meu Deus! Não é possível que tivessem sido criados apenas para mastigar comida. Se assim fosse, eu diria que não era necessário um esforço tão grande."

Minotauro, Benjamin Tammuz, tradução de Nancy Rozenchan, editora Rádio Londres, 2016, 2a. edição.

sábado, 4 de agosto de 2018

A PROMESSA, FRIEDRICH DÜRRENMATT




   [...] para ser sincero, nunca tive os romances policiais em tão alta conta e sinto muito que o senhor também os escreva. Perda de tempo. No entanto, o que o senhor disse em sua palestra de ontem valeu a pena; como os políticos fracassam de forma tão criminosa... [...] as pessoas esperam que ao menos a polícia saiba botar ordem no mundo, mesmo que eu não consiga imaginar esperança pior que essa. Infelizmente, em todas essas histórias policiais se perpetra ainda um engodo bem diferente, e não falo do fato de que seus criminosos sempre encontram a justiça, pois essas belas histórias são moralmente necessárias. Trata-se das mentiras que preservam o Estado, como o piedoso ditado de que o crime não compensa, ainda que seja preciso apenas dar uma olhada na sociedade para saber a verdade sobre esse dito popular, tudo isso eu deixo passar, mesmo que apenas por princípio profissional, pois cada público e cada contribuinte têm o direito a seus heróis e a seu final feliz, e nós, da polícia, somos obrigados a oferecer esse direito, como vocês, os escritores, também o são. Não, eu me irrito muito mais com a ação em seus romances. Aqui o engodo é tremendo demais, desavergonhado demais. Vocês constroem ações de um jeito lógico, e ele segue como um jogo de xadrez, aqui o criminoso, aqui a vítima, aqui o cúmplice, aqui o beneficiário; basta que o detetive conheça as regras e refaça os movimentos, logo ele terá posto o criminoso em xeque, ajudado a justiça a triunfar. Essa ficção me deixa furioso. Apenas em partes se lida com a realidade através da lógica.

   [...] Por sua vez, em seus romances o acaso não tem vez, e, se algo parece acaso, é ao mesmo tempo destino e coincidência; desde sempre, a verdade é jogada aos lobos por vocês, escritores, em detrimento de regras dramatúrgicas. Mandem essas regras para o inferno de uma vez. Um acontecimento não pode se desenvolver como um cálculo matemático pelo simples fato de de nós nunca conhecermos todos os fatores necessários, mas apenas alguns poucos, a maioria deles bem secundários. Também o acaso, o incalculável, o incomensurável tem um grande papel aí. Nossas leis baseiam-se apenas na probabilidade, na estatística, não na casualidade; aplicam-se apenas no geral, não no específico. O individual fica fora do cálculo. Nossos meios criminalísticos são insuficientes, e quanto mais nós os desenvolvemos, em princípio mais insuficientes serão. Vocês, da escrita, não se preocupam com isso. Não tentam lidar com uma realidade que vive escapando entre os dedos, mas montam um mundo que é administrável. Esse mundo talvez seja perfeito, possível, mas é uma mentira. É preciso deixar a perfeição para lá se quiserem continuar com as coisas, com a realidade, como é adequado para os homens, ou vão ficar aí sentados, ocupados com seus exercícios inúteis de estilo. 



   Aí está um trecho de "A Promessa", de Friedrich Dürrenmatt, escritor suiço, em edição da TAG Estação Liberdade, 2018. Infelizmente, não consegui capturar a imagem da capa do livro na internet, e não achei justo apresentar outra capa que não a dessa edição especial da TAG, entregue aos assinantes neste mês de agosto, fruto da curadoria do escritor Cristovão Tezza. Junto com "A Promessa" vem a novela "A Pane", que ainda não li.
   Aqui, o narrador, um comandante de polícia conta a um escritor uma investigação muito especial. A narrativa pode ser rotulada, para quem gosta disso, de antirromance policial. Para mim, foi uma deliciosa surpresa. Leitura altamente recomendável.

Imagem: FDürrenmatt, askART, capturado em Bol Fotos

domingo, 29 de julho de 2018

HOMO SAPIENS SEXUALIS, Marcelo Frazão e Paulo Villela




Quantos segredos
revela nosso avesso
o avesso do corpo
a carne
de dentro
em contato
com a carne
de fora
morna
úmida
profunda
em movimento.

*****

Você é
a qualidade
do sexo
que faz.

*****

Corpos, membros e salivas
não vem
com manual de instrução.

Talvez não seja bom
nem ruim
apenas a vida
afinal
que mistérios
são mais impressionantes
que os nossos
próprios mistérios.

*****

Sexo
é compromisso
assinado a lápis.



   Lendo "Homo Sapiens Sexualis", livro com poemas do Marcelo Frazão e desenhos do Paulo Villela, publicado pela Villa Olívia, em 2015, com recente lançamento multimídia em Salvador, a que, infelizmente, não pude comparecer. Extraí da leitura esses fragmentos ou poemas por completo do Frazão, que aqui vão desacompanhados dos excelentes desenhos do Villela por culpa de minhas deficiências tecnolábicas (?). 

   Recomendo o uso, ou melhor, a leitura nona do conjunto, e se quiserem ir mais adiante, fiquem à vontade. E mais não digo pois o livro traz dois textos muito bons assinados por Carlito Azevedo e Álvaro Sá, que muito melhor que eu sabem do labor literário contemporâneo e atrevido, como esse belo trabalho da dupla Frazão/Villela.

sábado, 16 de junho de 2018

COPA DO MUNDO 2018 - o rebuliço



   Durante a Copa do Mundo publicarei textos no blogue Papo de Arubinha (www.papodearubinha.blogspot.com). Apareçam por lá.

terça-feira, 5 de junho de 2018

FUTEBOL E AMIZADE



   Então é Natal, cantaria Simone, que já bateu bem uma bola de basquete. 
   Fato é que, então, é Copa do Mundo. E na Rússia, lá onde a razão perdeu as chuteiras.
   Mas, antes, dois espantos: a final da Champions League, uma partida vencida pela truculência de um zagueiro, que merecia encontrar um seu avatar pelo caminho. Sérgio Ramos ganhou o título para o Real, sozinho, ao tirar Salah da partida e o goleiro Karius de órbita. Um plano perfeito. O resto foi consequência natural, hoje sabemos. Sérgio Ramos, anotem esse nome para quando chegar a hora.
    O outro espanto sempre me vem quando alguém cobra um lateral. Por quantas vezes durante uma partida a cobrança de lateral altera seu rumo? Sim, todo chute e cabeceio também possuem esse condão, mas o lateral é tão trivial, tão inofensivo, apenas uma reposição de bola em jogo, mas aí o sujeito resolve fazer algo diferente... e a partida toma um rumo inesperado. Acho que é trauma daquele gol do Botafogo contra o Vasco.
    Mas, então é Copa do Mundo. E lá vamos nós, meio sem graça, quase por obrigação.
     Thiago Silva como titular, pra mim, equivale a túmulo aberto, pago, com lápide aguardando a data precisa. "Ele quase morreu de tuberculose na Rússia; quem sabe, essa é chance de redenção", garanto que ouvi esse argumento estapafúrdio. No mais, sinto cheiro de tudo no ar. Vou torcer para a Islândia e pelo Egito, se Salah jogar. Quando o Brasil entrar em campo, sei que não tenho como fugir: vou ficar puto com o ramerrão dos passes infindáveis, com os escorregões da defesa e com a chicana do ataque. Ou seja, vou me retar com um tal cai-cai.
    Aí vem um amigo e me envia um video em que uma moça tenta evangelizar um pessoal de amarelinha sobre a situação do país etc etc etc e que assim não dá para torcer pela seleção etc etc etc. Rapaz, querem reviver o clima da Copa de 70. Torcer pela seleção é não se importar com a situação do país, quem torce é alienado etc etc etc. Bem, a amizade entrou aqui para dizer, por fim, que a gente tem que se esforçar pra respirar, mesmo sem problemas respiratórios. De qualquer forma, vou ver sozinho as primeiras semanas da Copa, ao que tudo indica.
     Claro que eu não lembrei ao amigo evangelizador que na Copa de 14, ano de reeleição da presidenta, no Brasil efervescente, o tal video teria sido obra de emplumados. Não, não lembrei, melhor a amizade.