sábado, 23 de julho de 2016

PROUSTIANAS 7


    Realmente dizemos que a hora da morte é incerta, mas, quando dizemos tal coisa, imaginamos essa hora como que situada num espaço vago e remoto, não pensamos que tenha a mínima relação com o dia já começado e possa significar que a morte  -  ou a sua primeira apossação parcial de nós, depois do que não nos largará  -  possa ocorrer nessa mesma tarde, tão pouco incerta, essa tarde em que o emprego de todas as horas está previamente regulado.

   Os mesmos fenômenos que ocorrem com os indivíduos reproduzem-se nas massas, por ocasião das grandes crises. Numa guerra, aquele que não ama o seu país não diz mal dele, mas julga-o perdido, lamenta-o, vê tudo negro.

    As criaturas que desempenharam um grande papel na nossa vida, é raro que saiam dela de súbito de um modo definitivo. Voltam a pousar nela por momentos (a ponto de alguns acreditarem numa ressurreição de amor) antes de deixá-la para sempre.

   Um artista não tem necessidade de expressar diretamente seu pensamento em sua obra para que esta reflita a qualidade desse pensamento; também se pode dizer que o louvor mais alto de Deus está na negação do ateu, que acha a criação assaz perfeita para que possa prescindir de um criador.

   Sabia eu que não só entre as obras, na longa série dos séculos, mas também no seio de uma mesma obra, se diverte a crítica a mergulhar de novo na sombra o que era radiante há demasiado tempo, e em fazer sair da sombra o que parecia condenado à obscuridade definitiva.

   [...] há em suma mais amantes do que maridos inconsoláveis.

   Nossa memória e nosso coração não são bastante grandes para que possam ser fiéis. Não temos suficiente lugar, em nosso pensamento atual, para guardar os mortos ao lado dos vivos. Somos obrigados a construir sobre o que precedeu e que só tornamos a encontrar ao acaso de uma escavação [...].


Extraídos do vol. 3 de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, "O caminho de Guermantes", com tradução de Mário Quintana, editora Globo, 1964.


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