quarta-feira, 8 de junho de 2016

PROUSTIANAS



   A esperança de ser aliviado lhe dá ânimo para sofrer.

   Mas nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contas ou um testamento: a nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio.

   O que censuro nos jornais é fazer-nos prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais.

   [...] assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá.

   A meia altura de uma árvore indeterminada, um pássaro invisível empenhava-se em que fosse breve o dia, explorando com uma nota prolongada a solidão circundante, mas recebia desta uma réplica tão unânime, um contragolpe tão reduplicado de silêncio e imobilidade que dir-se-ia que ele acabava de parar para sempre o instante que procurava fazer passar mais depressa.

   Só há duas classes de criaturas: as magnânimas e as outras; e cheguei a uma idade em que é preciso tomar partido, decidir de uma vez por todas a quem se quer amar e a quem se quer desdenhar, apegar-se àqueles a quem a gente ama e não mais deixá-los até a morte, para resgatar o tempo perdido com os outros.

   Saber nem sempre permite evitar.

   A gente não conhece a própria felicidade. Nunca se é tão infeliz quanto se pensa.

   [...] a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, como os anos.


Extraídos de "No caminho de Swann", vol. 1 de "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, editora Globo/Porto Alegre, 2a edição, 1961

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