domingo, 22 de novembro de 2015

NOITE ALTA, RUY ESPINHEIRA FILHO

  
   Passeio pela noite alta, aquela desvestida de qualquer vestígio diurno, de anoitecer e da noite inicial, sempre agitada por luzes e vozes.
   Passeio pela noite alta, aquela encorpada, silenciosa e densa: noite quase pura, que antecede um novo alvorecer. Aquela em que até os galos ainda dormem.
   Essa noite alta está posta em livro por Ruy Espinheira Filho. E é por ela que passeio.
   O poeta faz sua saudação agradecendo "Ainda poder / escutar a Musa, / embora já imerso / na sombra difusa." Acontece que a sombra do poeta é facho que ilumina a todos que alcança. Todos que estamos imersos na pior sombra, essa do cotidiano de sangue e de mentiras.
   O  poeta ilumina nossa noite a partir de um caminho de memórias de vida e morte, de outros tempos, outras ruas e noites em que moravam anjos. E em que a sombra de Orfeu descia docemente sobre aqueles que, "[...]encantados, / ainda iriam arder vidas inteiras".
  A noite alta não oferece mapas, nem o poeta a isso se dedica. Ao contrário, escancara portas e novas trilhas ao revelar trazer consigo "[...] de modo claro ou obscuro, / cada vez mais saudades do futuro".
   Nessa noite alta não se deve acompanhar o poeta, passo a passo, pois há golpes de ventos súbitos e retornos inesperados e leituras e releituras de livros e episódios, dilúvios e anjos da guarda, meninas mortas e cidades antigas; e porque é alta essa noite também nela se encontra muita teia de sonhos.
    Não se trata de um passeio no parque, esse que se faz pela noite alta. Há tumultos cordianos desde o antológico poema "Dias", nas páginas iniciais. Outros baticuns cardíacos afloram quando nos deparamos com as moças de antigamente, postas em soneto memorável, do qual se extraí a preciosa lição de "ser feliz por ter sofrido tanto".
   Passeio, não viagem. Por isso mesmo, retornamos ao conforto do nosso tempo para depois, descansada a alma, voltarmos a essa noite alta com que o poeta nos brinda. Noite para muitos passeios e contemplações. Nela, o tempo do poeta, dilatado em seus extremos, é próprio mas universal. E exige leveza do leitor na aproximação. O poeta pensa seus tempos para nos entregar beleza em versos, reconhecendo: "não sei como poderia transmitir a alguém a alma / daquele tempo".
   Noite alta, o tempo da alma.


Noite alta e outros poemas, de Ruy Espinheira Filho, publicado pela editora Patuá, SP, 2015.

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